terça-feira, setembro 20, 2005

Umbigo migratório

Copiado com a devida vénia, do Xicuembo.

“Primeiro devo dizer-vos que de migrações pouco sei além das minhas, algumas foram, e delas passo a contar.

Andava na antiga primeira classe, na Covilhã, quando os meus pais decidiram migrar em perseguição do sonho africano, crendo que a assunção do mito do império nos daria uma vida mais distante da modéstia do dia-a-dia sempre curto. Era a esperança noutro viver.

Há erros que vêm por bem, e por via desta ilusória rota das caravelas eu e minha irmã recebemos o bafo de África, quente, terno e sensual.

Essa foi a minha primeira migração, e por ela cresci como enxerto colonial na frondosa árvore africana.

Quando acreditava que conseguia escalar todos os seus ramos, e no mais alto faria o meu ninho, um dos grandes ciclos da História faleceu de caduco e, no seu ruir que gerou vagas impiedosas ao pormenor humano, eu migrei novamente.

Regressei a este Norte que vi e bebi como gélido, reconstruindo-me nesta pele que então vesti, encasacada em tanto que me era estranho, hostilmente diferente da tropical sedução que abandonara.

Como a idade era outra, e da troca não entendi vantagens que fossem além duma mítica segurança, a minha segunda migração teve dores que ainda hoje me murmuram saudades doutro que fui.

Cresce-se, acasala-se, ambienta-se. Nas dúvidas inventam-se certezas. No amadurecer descobrem-se seivas que ajudam a sorver o quotidiano.

Do bi-migrado constrói-se o integrado; mas quando os dias empalidecem e as noites correm lentas, os olhos encontram na memória cantos e cantares que não morreram.

Da árvore que trepei, sonhando o cimo da sua copa, sobra em silêncio uma lágrima que não a esquece.

Por vezes costumo dizer, a título de desabafo apressado aos que me questionam sobre a minha dualidade de sentimentos – europeu por nascimento e posterior adopção, africano por vivência e paixão, que quem foi beijado por África nunca de tal beijo se esquece.

Eu não fui beijado, foi mais profundo. Fui seduzido em corpo e emoção, e desse amar violento guarda a memória carícias de que não me evado nem emigro, é tão envolvente como o é uma paixão.

E que se vive no remanso do silêncio, até um dia…

Quando pensava que o ciclo estava completo, e as cãs induziam a um manso Outono, nasceu a terceira migração.

Evadi-me ao quotidiano, despi-me de mantas e de anos e renasci noutro, sendo que dele não houvera prévia noção.

Pela palavra reconstruí-me e nela encontrei novo abrigo, viajei dentro de mim e saltitei feliz na sua construção. Migrei para um mundo novo onde a árvore é tão bela e tão frondosa, que leio-me incapaz de dela colher todos os seus encantos. Sonhei-me ‘escritor’ e consegui alcançar o ramo de ‘autor’.

Este é o meu terceiro país, de todos o passaporte que beijo com mais calor, pois nele coexistem os outros e todos os mais que eu queira, reais ou imaginários.

É finalmente a árvore cuja sombra me dá descanso, são as folhas que me cobrem e afagam os frios da vida, os frutos que alimentam o já premente empalidecer.

É este o meu mundo. Migrei para a palavra e nela leio a minha nacionalidade, nela recrio e releio todas as outras do passado. Migrando pela vida, construí a minha realidade.

Entre outros significados, o dicionário aponta à palavra ‘migração’ o de: “viagem de dois sentidos, feita por certos animais em épocas periódicas e regulares”. Acho que cumpri a definição.

Sem deixar para trás traições ou desamores, completei o círculo e por acidente histórico regressei à minha terra de origem, de onde migrara no tempo dos calções e dos joelhos esfolados. Finalmente, em construção escrita tracei passos e estendi carícias, nos seios da escrita alimento o respirar do ocaso.

Parecerá soberba, mas atrevo-me a dizer que pelas migrações realizei-me, e hoje e por elas reclamo lugar ao meu sorrir.

Termino com uma dúvida: vivemos nas ilusões que criamos ou, migrando nelas, recriamos o viver? ao encontro da nossa própria sombra, da nossa árvore?"

4 comentários:

Carlos Gil disse...

Surpresas boas, mimos que me deixam a ronronar a vaidade, também a sorver o prazer de ter Amigos...
Um beijo Marylhu, minha Amiga em todas as horas, também ora em que as letras se encadearam, e reconheço que não ficaram mal arrumadas.

Anónimo disse...

minha querida Maryluh, estou em divida eu sei, mas como gosto tantod e ti e de tudo o que sabes fazer, tenho que te dizer que adoro vir aqi ler e ver algumas das fotos, eentao o Carlos Gil, esse nem se fala, pois escreve muito bem e com um sentimento que vai la mesmo ao fundo da alma. Lindo e continua, sempre, jokinhas linda, tua amiga

Isabel Filipe disse...

Já tinha lido...

deixo-te um beijo amiga

Vagabundo disse...

Confesso que fui rápidamente em Fuga ao Xicuembo...vou passar com mais calma.
Obrigado pelo conhecimento.
Vagabundo