domingo, julho 03, 2005

Livro "Xicuembo" - Apresentação

“Algumas palavras sobre “Xicuembo”

Apresentação do livro Xicuembo, por Guilherme José de Melo

Não sei se estão lembrados daquela frase mágica com que abre a saga que George Lukas criou e se chama “A Guerra das Estrelas”. “Há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante…” Exactamente.

Pois bem: quase me apetece dizer o mesmo a propósito do tempo dito colonial e tudo quanto o envolve. É assim, de facto, que a novíssima geração dos portugueses pensa quando dele ouve falar. Coisas que se passaram há muito (milénios, com certeza) em estranhas terras, com estranhas gentes. Como que numa galáxia muito, muito distante…

A verdade é que a literatura pós-25 de Abril não tem sido pródiga no que respeita a este tema. Não são muitos os escritores que nestas últimas três décadas se dispuseram a escrever acerca da vida que caracterizava o quotidiano nas antigas colónias de África. Mesmo sobre a guerra que as libertou – e que, quer se queira quer não, marcou de forma decisiva a sociedade portuguesa – não são muitas as obras vindas à luz do dia, como se pairasse ainda sobre a nossa criação literária uma espécie de vergonha, um anátema, um fantasma que tarda em ser definitivamente exorcizado. Quanto mais sobre o tempo que a antecedeu.

Bastaria, pois, o facto de “Xicuembo” ser um livro sobre esse tempo e, mais importante ainda, escrito por alguém que directamente o viveu, para fazer desta obra de Carlos Gil motivo para, de imediato, nos prender a atençaõ e o transformar num caso de leitura obrigatória em termos de grande público. Isto é: não só para quantos nas antigas colónias nasceram ou viveram, mas igualmente para todos aqueles que aqui nasceram e nunca de cá saíram e que assim terão uma oportunidade ímpar de saber o que foi de facto esse tempo que passou, que ninguém, naturalmente, lá ou cá, deseja que regresse (o tempo só volta mesmo para trás na cantiga do António Mourão, não tenhamos ilusões…), mas que é bom saber-se como era, como foi, o que significou e representou. De bom ou de mau, naturalmente.

Importa, antes de mais, sublinhar que o livro de Carlos Gil não é um livro saudosista – embora seja um livro de saudade. Saudade do cheiro bom da terra molhada depois que sobre ela tomba, como um rufar violento de tambores, a chuva quente de verão. Saudado do céu tinto de anil e fogo pelo Sol a desaparecer na linha do horizonte, como só mesmo em África acontece. Saudade do espaço aberto, da lonjura dos tandos infindáveis por onde o boi-cavalo galopa. Saudade do odor a maresia nas manhãs translúcidas da Polana ou Bazaruto. Saudade, sobretudo, da camaradagem simples e desinibida nascida entre as gentes, forjada no dia a dia da rua, das esplanadas, nos bailes das associações, nos jogos a céu aberto e campo raso. Algum dia os que nunca lá nasceram ou viveram poderão saber, conseguirão entender, o que isso é?

Mas o livro do Carlos Gil tem ainda outra particularidade notável. Muitas vezes, estes livros de memórias acabam por se tornar enfadonhos, para quem os lê, pela simples razão de que, quem os escreve, os faz duma forma que só a eles interessa. Ele não. Cada facto que relata, cada episódio que evoca, cada passo que recorda, é sempre, para o leitor que para estas páginas se debruça, uma deliciosa e apaixonante viagem por um mundo que não é só dele – mas de todos os que, como ele, um dia foram crianças, adolescentes, jovens, se fizeram homens e mulheres. Para todos os que, como ele, tiveram uma infância marcada pelos medos nocturnos, logo depois pelos húmidos sonhos que irão descambar no tempo do enamoramento e paixão, que deixaram a vida correr ora mansa e dolente, ora dorida, impetuosa, até ao momento decisivo em que, de repente, nos apercebemos de que não somos mais nós próprios que cavalgamos o corcel do destino, mas tão somente ele que consigo nos arrasta. É essa dolorosa oficina de viver que o livro de Carlos Gil reflecte e representa.

É evidente que, para quem nasceu em Moçambique ou ali viveu, ele tem um significado e um sabor redobrados, na medida em tudo lhe é – nos é – familiar: o Polana e o Scala, a Malhangalene, o palmar e a Beira, o céu abafadiço dessa Quelimane opulenta, o feitiço da velha ilha histórica, lá ao norte, a vastidão de Pemba, o mistério do planalto maconde. Essa é a carne, o sangue, os nervos subjacentes a todo esse pormenorizado relato de uma vida – a sua – exposta, contada, revelada e desnudada em toda a sua verdade e minúcia, como um espelho mágico no qual, mais do que simplesmente estarmos vendo nele reflectido o seu dia a dia nesse tempo e nessa hora, se reflecte afinal o tempo e a hora que também foram a hora e o tempo que nos marcou.

O’Neill dizia que nós, portugueses, temos muito a tendência para “contar a vidinha”, como se ela pudesse afinal interessar aos demais. Só que o Carlos Gil não teve, seguramente, apenas essa preocupação: a de contar a sua “vidinha” – mas, sim, a de contá-la de modo que ela simbolizasse a vida que, dele ou de qualquer um de nós outros, se viveu num tempo e numa hora que não mais poderão voltar, mas que importa que fiquem como um testemunho. Ou como um testamento às gerações que nos sucedam. E esta é também outra das razões – talvez mesmo a maior de todas – porque acho que valeu a pena tê-la escrito e publicado.

Como já disse, não abundam, na nossa literatura mais recente, os livros que documentem a época colonial, sobretudo a de duas ou três décadas que precederam o despertar em força, dessas então ainda colónias, para a sua libertação de forma a emergirem como nações soberanas que hoje são. Carlos Gil teve a coragem e o desassombro de trazer a lume a sua estória, contribuindo assim para que essa lacuna comece rapidamente a desaparecer. Com verdade, acima de tudo com verdade. Sem dourar pílulas nem esbater sombras. Mas também sem negar claridades onde elas de facto existiam. Os testemunhos, quando autênticos, quando sentidos e reais, valem por si mesmos.

“Xicuembo”, todos nós o sabemos – e quem lá não nasceu ou viveu um dia é bom que o fique a saber – é uma daquelas palavras africanas sem tradução possível no linguarejar europeu. Porque sendo Deus, é feitiço; porque sendo o omnipotente é também mistério que aterra, o segredo que envolve, a praga que se abate, o sonho que embala. O sortilégio que marca.

Que outro nome poderia ter este livro, Carlos Gil, senão este mesmo?

GUILHERME DE MELO
Lisboa, 18 de Junho de 2005

3 comentários:

Carlos Gil disse...

Luisinha, acredita-me que nem a minha mãe nunca falou tão bem de mim como o GMelo! Eu - e todos!, estava de boca aberta a olhar para ele! lol
Mas acho a definição dele como poderosa e clara: 'Xicuembo é um livro de saudade mas não saudosista'. Magnífica síntese.
Beijito meu para ti.

Português desiludido disse...

Olá. Obr pela visita ao "Faro este"! Já percebi que temos em comum o amor a uma coisa chamada Moçambique!
Aqui vai a música do Bonanza:
http://bonanza1.com/bonan.wav
uma vez que estamos ambos em Faro é bem possível que nos encontremos!X@U
Pedro

Português desiludido disse...

Tomei a liberdade de linkar o teu blog! Estou a tentar juntar todos os blogs activos do Algarve, no "faro este"!
Pedro